A Voz
Ivo Túlio gostava de andar próximo à pista, vendo os faróis se aproximando, crescendo e morrendo com seu gemido triste. Às vezes um auto-ar parava a seu lado. O passageiro, distraído de sua leitura noturna, ou pego de surpresa durante os comerciais da auto-tv, olhava espantado. — Bom dia, senhor. Algum problema com seu caminhante? Gostaria de uma carona?
— Não, obrigado. Eu gosto de usar as pernas.
Poucas pessoas andavam desde que os caminhantes passaram a ser produzidos em série. Em 2052, o pavor dos acidentes a pé era uma fobia estabelecida. O caminhante, uma geringonça circular de metal antigravidade, do tamanho de um pneu e com um nanochip que processa os impulsos cerebrais e o dirige ao caminho desejado, tinha se encarregado de acabar definitivamente com o hábito de colocar pé-ante-pé para se locomover. Recentemente, Túlio encontrara, numa antiga biblioteca, um verbete intitulado “calo”. Decidido a presenciar o nascimento de uma dessas interessantes anomalias anatômicas, achou, em uma loja de quinquilharias, um par de sapatos dois números menor que o seu. Para o prazer de Ivo, o fundo de seu calcanhar já coçava irritantemente. “Andar a pé! Daqui a pouco vai querer correr uma maratona!”, dizia a mãe.
Quando entrava em um ônibus ou caminhava por ruas antigas atrás de bibelôs do século XX, Ivo Túlio, às vezes, sentia que não estava sozinho. Já tinha se acostumado. Era como se dividisse com alguém aquele gosto do passado, um alguém que ainda usava sapatos de couro e relógios de pulso, mas preferia o segredo da invisibilidade. Às vezes conversavam, em pensamento. E ouvia respostas, mas não acreditava nessas coisas. Seria ele diferente, melhor, pior, estranho? Não sabia. Mas, cada vez que entrava em algum lugar, sentia que estava interrompendo algo. Como se o mundo, secretamente, conspirasse. O tempo todo.
A noite avançava madrugada adentro. Túlio chegou ao fim da pista. De vez em quando, um carro desprogramado parava pelo segundo e meio necessário para que seu computador de bordo refizesse a rota e seguia, com um clique surdo, sua trajetória robotizada, levando em seu interior passageiros sonolentos ou narcotizados. A paisagem era agradável. O lixo do mundo. O cemitério das idéias. A herança selvagem. A morte. O fedor. O mundo velho. Chamavam de muitos nomes. A Metrópole cresceu em volta daquele que um dia foi conhecido como o Berço da Civilização. Ninguém se interessou em reconstruir a cidade antiga. Aviões, helicópteros, carros a combustão, televisores, computadores não-quânticos, todo o lixo não reciclado da última revolução tecnológica estava ali, dentro dos prédios desabitados. E havia, também, algo que Túlio não encontrava em outro lugar – livros. Não como os da biblioteca — uns quadriláteros pretos de dois milímetros de espessura, com telas de plasma e sistema automático de avanço de páginas. Mas livros de verdade, amarelados, com traças, poeira, anotações de margem e rodapé, marcadores, dedicatórias, folhas secas, bilhetes de amor, receitas médicas, dinheiro de celulose e listas de compras.
Amanhecia.
A descida era íngreme. No topo do monte, uma placa luminosa se apagou. Mochila apertada nas costas, avançou devagar, quase deitando no matagal que o encobria. Os edifícios, antes apoteóticos arranha-céus do século XX, agora não eram mais que um amontoado de paredes escuras e vidros quebrados. Em uma grande avenida, os carros de alumínio se enfileiravam num grande, interminável, infinito engarrafamento. Como se um dia, na hora rush, todos de repente houvessem decidido largar seus veículos pesados e poluentes para dar uma volta despreocupada pelos campos e vales que cercavam a Cidade Antiga. Ninguém perdia tempo naquele lugar. Túlio podia ouvir seus passos ecoando longe, reverberando no passado, tocando-o, fazendo-o vibrar e viver de novo por breves segundos. Vindo e indo. Nascendo e morrendo. Como os faróis na auto-estrada.Terra. Algo que não se via na Metrópole. Onde não havia concreto, a grama artificial cobria o horizonte com seu verde sintético. Sentiu vontade de tirar os sapatos – e tirou. Colocou-os na mochila. As pedrinhas pinicavam, a poeira grudava e ele precisava desviar das poças d’água – mas era bom.Adiante, um trator amarelo-ferrugem bloqueava a passagem para uma rua que se estendia à direita. Túlio quis desviar. Mas a voz, quase audível, trêmula até, lhe indicava o caminho.
Em pouco tempo, o pé descalço de Ivo brigava com uma das rodas, enquanto com as mãos ele se apoiava na porta do veículo, usando a cabine como passagem para o outro lado. A rua estava estranhamente vazia. Nem sinal de carros. Nenhum entulho, lixo ou restos. Era como uma rua comum, em que todos ainda estivessem dormindo em suas camas numa manhã de domingo. Túlio podia ouvir os ecos distantes de jornais sendo jogados nas frentes das casas, pessoas saindo atrasadas para seus trabalhos, crianças fardadas andando rua acima em uma algazarra distante, que se perdia docemente no horizonte. Fechando os olhos, podia ver. Querendo, podia tocá-las. Mas, quando abriu os olhos, tudo o que viu foram casas mortas. O portão de uma delas pendia, quase solto. O muro baixo deixava ver o telhado. Marrom das telhas e negro do tempo, ostentava no meio um grande buraco, que ia de parede a parede. Quando entrou, Ivo Túlio deixou para trás o portão caído. Entre os pés e o chão, a camada de folhas secas produzia um crepitar agoniante. Entrou.
Era uma sala pequena, retangular, com o sofá de frente para uma estante. Sobre ela, aparelhos antigos — TV, vídeo e uma pilha de discos que Túlio conhecia apenas de museus. Um homem com o cabelo de cuia sorria em uma capa de papelão. O corredor, longo e escuro, o chamava. No meio do caminho, a porta de um quarto desviou sua atenção. Uma cama de casal, comida pelos cupins, se sustentava com restos de inércia. Na escrivaninha havia um livro. Antes de pensar, Ivo já o tinha nas mãos. Ao contrário do resto da casa, estava limpo e bem conservado. Não havia título. Depois de algum tempo ele se lembrou que, ao contrário dos livros da biblioteca, este devia ser aberto. Abriu-o cerimoniosamente, com a lentidão reflexiva dos tempos. No entanto, logo quando se pôs a ler as atraentes páginas, estas começaram a se desfazer, não obstante não houvesse naquele quarto abafado correntes de vento que justificassem que aquelas folhas se dividissem em mil partículas de pó, que produziam uma nuvem estranha e pesada que agora o envolvia. Tentou passar as folhas com mais cuidado, sem sucesso. Irritando-se, trocou-as com os dedos frenéticos, e no íntimo gostaria ter em suas mãos não um fóssil do século passado, mas um confortável nano-pc com controles mentais. As páginas, como se fugissem, também se desfaziam em velocidade crescente. Em pouco tempo, o livro todo pairava em volta de Ivo Túlio. Irritado, sentou-se na cama, a capa oca nas mãos. Levou menos de um segundo para que os pés da cama se soltassem e ele caísse junto com ela. O baque foi tão grande que, do teto, caiu uma camada de poeira. Estranhando, ele se levantou, indo até o corredor. Uma chuva de poeira caía do telhado, cobrindo Ivo Túlio de cinza e fazendo-o tossir. Andou acelerado até a porta, quando ouviu o primeiro estrondo. Na sala, a TV se espatifava no chão, enquanto o sofá deslizava para a frente. A previsão do tempo não havia mencionado terremotos, mas não havia dúvida de que a terra tremia. Desesperado, Ivo Túlio passou pela porta e cruzou o quintal, caindo muitas vezes. Cidade Antiga convulsionava — Ivo corria em desespero solitário. Passou pelo trator em um pulo desengonçado, e, subindo nos carros, cortou caminho pelo engarrafamento infinito. O tremor dava sinais de que iria parar, mas depois voltava com força redobrada. Em uma dessas, Túlio caiu de cima de um carro e, em um pára-choques, rasgou o braço direito de uma ponta a outra. O sangue misturado com a terra empapava sua camisa e o cobria com um marrom selvagem. O livro ficou para trás.A descida fácil agora se convertia em um desafio mortal. Tentando escalar o barranco sem qualquer apoio, logo Ivo Túlio estava coberto de terra, sentindo por todo o corpo as pancadas ferozes que vinham das profundezas. Não podia respirar e sentia-se morrendo, quando, de repente, um baque mais forte o projetou para cima. Ele estava negro, quase desmaiado, mas agora mais próximo de subir até a pista, onde acreditava que estaria seguro. Aproveitando uma brecha no inferno, deu alguns passos certeiros e logo estava são e salvo, na pista por onde havia chegado na agora longínqua madrugada.
Depois de três longas respirações, Ivo Túlio se perguntou que tipo de terremoto era aquele, que só revolvia a terra da Cidade Antiga. Intrigado, resolveu olhar para trás, quando viu as gigantescas armas sônicas da Companhia Nacional de Reconstrução posicionadas há cerca de cem metros. Levantando assustado, viu, no lugar por onde havia descido, uma grande placa luminosa que brilhava, entre piscadas defeituosas, com os dizeres “CUIDADO! ÁREA EM RECONSTRUÇÃO”. E então, ao comando do homem pequeno seguramente posicionado atrás das máquinas, toda a cidade antiga estremeceu a um só tempo. A casa veio abaixo, caindo de frente sobre o jardim. Debaixo do trator surgiu uma grande cratera, que o sugou, junto com os carros e o asfaltamento. Os arranha-céus, decrépitos e imponentes, vinham abaixo em quedas espetaculares, e o céu se cobriu de cinza. As crianças, em suas felizes estripulias, perdiam a voz e a cor, esmaeciam e se uniam à poeira e à fuligem, espalhadas pelo chão. Ao longe, uma voz rouca, triste, dolorida, uma voz que era o próprio tempo, dava seu último grito. O homem, de longe, chamava Ivo Túlio. Mas ele não queria andar. Reuniu forças e gritou, um tanto desanimado, que preferia esperar que ele trouxesse um caminhante.