Blood Simple
Sinopse (IMDB): O dono de um bar no Texas está certo de que sua esposa o trai, e contrata um detetive particular para espioná-la. Este é só o começo de uma história complexa e cheia de reviravoltas. O primeiro filme dos irmãos Cohen.
Uma voz arrastada de caipira acompanha a paisagem tipicamente texana. O marrom desértico, a vegetação levada pelo vento, as construções isoladas no meio do nada - nas rochas secas, na paisagem infinita, no sol causticante que só pode ser suportado está a dureza do verdadeiro espírito americano. "O mundo está cheio de reclamões. E o fato é que nada é garantido. Não me importa se você é o Papa, ou se é o presidente dos Estados Unidos da América; alguma coisa sempre dá errado.", diz a voz de Loren Visser, o asqueiroso detetive particular que vai ser peça importante da narrativa. A voz over é uma piada sutil. O universo árido de Gosto de Sangue não comporta conclusões, dele não brota qualquer conhecimento da vida. Como larvas, todos se movem horizontalmente na mesma lama. Não há espaço para a redenção no mundo dos homens.
O corpo sendo arrastado, o motor do carro, a porta que bate, o caminhão que chega, as respirações, os sons conscientemente programados esculpem um tempo que flui ao prazer da cena. O ritmo diletante, em harmonia com um roteiro que prima pela sutil desconexão, demonstra a consciência que os realizadores têm do material cinematográfico. Objeto e modo de fazer encontram-se integrados. A direção dos planos prescinde da simulação de espontaneidade. A suspenção da descrença, tão cara ao cinema, é, se não relevada, ao menos encarada com irreverência. Em certa medida, os Coen não estão preocupados em provocar uma identificação com os protagonistas que, bem sucedida, deslocaria o olhar para uma ligação com os seus dilemas em si. O cálculo, a sincronia, o toque preciso estão ali para servir não só à progressão da história, mas também a um efeito claro de comunicação do próprio cinema.
Este cinema autocomunicante é a tônica dos irmãos Coen. Ainda que dentro de sua filmografia seja possível identificar diversos fios de relação, eles não se limitam a uma visão de mundo que deseja ser projetada e corroborada na tela. O tema é o próprio cinema. Seus filmes são como um grande inventário, em que figura todo um conhecimento assimilado da história do cinema, notadamente o norte-americano de gênero. Essa qualidade referencial, assumida e explicitada, longe de ser um sinal de falta de inventividade, é a matéria sobre a qual se constrói uma filmografia com bases muito próprias. A diferença é que, ao contrário dos cineastas "prudentes", os Coen não escondem os ombros sobre os quais se apóiam.
A ligação com o noir está basicamente na história de intriga amorosa envolvendo detetive, mas este é só um ponto de partida. Como crianças brincando de montar, os Coen pervertem a fórmula ao pôr as vestes de herói num personagem fraco e apaixonado. Quase parodicamente, Ray (John Getz) tem o jeito másculo e reservado dos protagonistas do gênero, mas suas atitudes passionais em nada o assemelham aos durões detetives de Humpfrey Bogart. Não se trata, portanto, de uma homenagem na forma da recriação. Os irmãos Coen potencializam aqueles elementos que se encontravam dispersos nas obras do gênero, em um processo que prioriza o que mais lhes convém, residindo aí seu caráter autoral. Em Gosto de Sangue, enquanto o núcleo amoroso é tratado com frieza e desinteresse quase problemáticos, um tipo pitoresco como o detetive metido a cowboy Loren Visser (interpretado por M. Emmet Walsh) ganha tempo de tela e desenvolvimento consideráveis. As cenas de amor, distanciadas pelas elipses, estão em flagrante constraste com as elaboradas cenas de violência e morte, quando nada é suprimido, em um fetiche mórbido que não esconde o desejo de levar o espectador à mesma condição miserável do personagem. O crime é filmado de perto - sua materialidade podre tem cheiro, tato e peso.
Impressiona ver tanta segurança em uma estréia. Não se trata apenas de um trabalho profissionalmente bem executado - estão contidos ali todos os elementos que consagraram a dupla em trabalho posteriores. Em filmes como Fargo e Miller's Crossing, o que se vê é um refinamento do que já estava presente em Gosto de Sangue, tanto em termos temáticos (seres humanos "normais" envolvidos de forma banal em tramas sangrentas) quanto formais (o ritmo contruído no uso da banda sonora, a violência retardada, as cenas-bolhas temporais dentro do filme). Depois daí, a carreira dos Coen foi um proveitoso caminho para dentro, quando eles retrabalharam os próprios elementos que compunham seu universo fílmico.
agradecimentos a Iris de Oliveira, pela "crítica da crítica" dedicada e impiedosa.