Davi Ramos

Cinema, Aspirinas e Urubus

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Marcelo Gomes, 2005

Cinema, aspirinas e urubus tinha de tudo para ser mais um blefe do cinema nacional, a exemplo dos fracos e premiadíssimos Amarelo Manga e Cidade Baixa. Até então, Marcelo Gomes não era mais que o desconhecido co-roteirista de Karim Ainouz (Madame Satã, 2002). Em sua estréia na direção de longa (que não dispensa a participação de Karim no roteiro e na produção), Gomes ganhou, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o prêmio de melhor filme tanto da crítica nacional quanto do júri internacional, além de melhor ator para o baiano João Miguel.

No pré II Guerra, Johann (o ator alemão Peter Ketnath) é um alemão que representa no Brasil uma companhia farmacêutica de seu país. Dirigindo seu caminhão, ele viaja pelo nordeste vendendo a "solução para todos os males": a aspirina. Para isso ele se vale de seu projetor cinema, que ele carrega para onde vai com seus rolos de propaganda. Ranulpho (João Miguel) logo se une a sua jornada, e essa relação entre o vendedor alemão e o sertanejo que sonha em ir para o Rio de Janeiro vai permear toda a história. No primeiro terço do filme, os personagens trocam discursos politizados, forçados e fora de lugar. A questão social, embora não se evidencie, força sua entrada em todas as falas. Ranulfo fala de pobreza, de êxodo. Uma outra carona, que logo desaparece, reclama da vida sem expectativas. Parece que todos decidem, espontaneamente, falar sobre suas vidas e problemas a um alemão desconhecido.

A fotografia, longe de evitar a luz cáustica do sertão, busca assumi-la enquanto elemento vivo daquele ambiente hostil, retorcido, seco. Como em Os Fuzis, o sol parece engolfar a todos. Mais ainda, as cores esmaecidas da imagem dão conta de criar na tela uma pasteurização que não diferencia gente e paisagem, e representa com precisão a monotonia de cores ao mesmo tempo hostil e pacífica do sertão.

Depois de quarenta minutos, parecemos estar vendo um outro filme. Se antes a força da história se diluía em diálogos secos e politizados, agora Gomes acerta a mão ao tornar mais clara a relação entre os amigos improváveis. Os dramas sociais caem para o segundo plano. Ranulfo se fascina pelo cinema, e, após algumas revelações, seu personagem ganha contornos mais humanos e verossímeis. As cenas mais longas, a montagem livre, a presença da música: enfim o filme mostra a que veio. Está claro que é a partir deste momento que Cinema, Aspirinas e Urubus conquista público e crítica, fazendo grande carreira por onde passa.

Com uma obra densa, que na tradição de Os Fuzis (Ruy Guerra) e Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos) busca uma captura crua da natureza e do tempo sertanejos, Marcelo Gomes consegue, de fato, criar a obra pulsante e verdadeira que estava faltando no recente cinema nacional. No entanto, sua indecisão entre o panfleto político e a dissecação das relações humanas se mostra problemática, como se ele houvesse feito dois filmes. Um fala sobre o sertanejo, a tragédia da seca, e ainda o drama da guerra e da distância vivenciados por Johann. Outro, sobre como situações incomuns geram relações improváveis, profundas e intensas. Essa incongruência enfraquece o todo, por uma questão simples de tempo. No primeiro momento, a construção emocional da amizade dos personagens se mostra truncada, aos solavancos, forçada. Quando finalmente ela acontece, percebe-se que boa parte do filme poderia muito bem não existir. Um erro perdoável para um diretor estreante. Até porquê, mesmo com todos os defeitos, Cinemas... é uma obra forte e comovente, que em pouco tempo faz o espectador comum esquecer as deficiências iniciais para embarcar na viagem de Johann e Ranulfo.

Publicação original.

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