Dudu e Eu
1. O Dudu era muito meu amigo. Marcamos em um café, no shopping. Íamos no cinema. Eu esperava sentado, tomando meu chá. Ele chegou, de camisa preta.
— Dudu!, aqui! – eu disse – Puxa uma cadeira.
Dudu olhou em volta e fez uma cara estranha quando me viu. Tirou a pasta tiracolo e, pedindo gentilmente (o Dudu era sempre muito gentil) ao casal do lado, pegou uma cadeira e sentou à minha frente.
— Diga, rapaz! O que tem feito?
— Nada de mais. Você sabe, TV.
— E a mulher?
— Disse que ia fazer vestibular. Ela não sabia, quando marcou, que hoje era o vestibular.
— E aí você me chama, né, sacana? Eu sou o estepe.
— Ainda acha que eu te chamei!
— Bonito, isso. Não diz onde anda, marca encontrinho com qualquer vagabunda escondido de mim, sai por aí com outros amigos e nem me chama... Que porra é essa?
Dudu ria. Nossa amizade era um esquete interminável. E retrucava.
— O que você quer? Nunca mais uma praia, uma viagem, um jantarzinho aconchegante! Você me poupe, Pedrão.
— Desde que a gente se conheceu você relaxou muito, engordou, enrugou, envergou! Assim não dá!
Dudu riu meio sem graça.
— Pedrão...
— Diga.
— Assim vão achar que a gente é viado.
— E você tá vendo eu me importar?
Dudu ria.
— Mas sério, e a mulher?
— Vai me ligar hoje.
— Que horas?
— Cinco.
— Você vai ter que ligar de volta.
— Eu sei.
— É bom. Deixa ela insegura.
— Claro. Mandei minha vó dizer que eu tava enchendo a cara no boteco.
— Isso, garoto.
— Agora eu vou ser obrigado a ir no boteco encher a cara. Eu odeio mentir pra velha.
— Terrível. Simplesmente terrível. Espero que você não tenha me incluído na história.
— Você ainda pergunta?
Bebi o chá de uma vez e pedi a conta.
— Porque não pagou logo?
— Não sei, acho que é proibido.
— Claro que não. Você dava logo o dinheiro pro garçom. Muito mais prático.
— E a classe, onde fica?
O garçom trouxe o livrinho com a conta.
— Vou colocar o dinheiro assim, saindo pela borda, pra ele vir pegar logo.
— Você é um imbecil, sabia disso?
— Se eu soubesse, não era imbecil.
É claro que não fomos ao boteco.
2. Eu e Natália havíamos dormido juntos. Ela ronronava de seu lado da cama, coberta pelo lençol, enquanto se espreguiçava felinamente. Eu olhava para cima, com as mãos embaixo da cabeça. Não estava feliz, tampouco triste. Era bom.
— Acordou tem muito tempo?, disse Natália.
— Esqueci de contar – eu não durmo nunca.
— Mesmo?
— Fiz uma cirurgia, uns anos atrás. Arranquei meu hipotálamo. Você sabe, a parte do cérebro que faz a gente dormir.
— Ah. Engraçado.
A Natália nunca ria de minhas piadas. Eu suspeitava que ela me achava um completo idiota, o que me fazia pensar que eu transava muito bem.
— Você comprou os cigarros que eu te pedi?
— Esqueci. Peraí que eu trago.
— Não, deixa. Pego na hora do almoço.
Ela quis almoçar fora. Descemos a escadas do motel no centro e saímos, em busca de comida decente. Encontramos um PF simpático e, pra nossa sorte, não muito barato e nem muito brega. Comíamos em silêncio, quando, ao longe, vi aquela figura branca, quadrada e coberta de preto, formar-se em minha retina. Era o Dudu. Ele me reconheceu. O chamei para sentar.
— Dudu! Não sabia que andava por esses lados...
Ele parecia distante, talvez preocupado.
— Trabalho aqui do lado, agora.
Todos faziam um silêncio de olhares evasivos.
— Essa aqui é a Natália. Natália, esse é o Dudu. Lembra que eu te falei dele?
— Muito prazer, Dudu. Ele fala muito de você.
— Sério? Quem diria! Esse aí só me vê uma vez na vida outra na morte...
O Dudu olhava pros cantos, os olhos caídos.
— E sua vó, como está? Aquela velha escrota ainda me odeia?
— Morreu.
— Sério?
— Sério.
Se o mundo explodisse, tenho impressão que Natália continuaria comendo seu bife com batatas. Mas voltando.
— E de quê, assim de repente?
— Câncer.
— Mas câncer dá assim?
— Ela tava internada há dois meses.
— Ah, tá.
— Bem, eu já vou indo...
— Não vai almoçar?
— Não. Como alguma coisa no caminho. Atrasado...
— Tá bom então. A gente se fala.
— É. Tchau, Natália.
Natália deu aquele sorriso irônico que eu amo. — Tchau, Dudu.
3. De madrugada e o telefone toca.
— Pedrão?
— Diga, Dudu.
— Sabe aquela mulher?
— A do vestibular? Sei.
— Terminou comigo.
— Você ligou pra dizer isso?
— Fica pior.
— Diga logo.
— Ela tá com meu melhor amigo.
— Mas Dudu, eu achava que seu melhor amigo era eu!
— Do trabalho!, melhor amigo do trabalho!
— Sim, e aí?
— Não vai dizer nada?
— Quer que eu diga o que?
— Sei lá, qualquer coisa.
— Dudu, eu vou dizer uma coisa que vai te ajudar pro resto da vida. Tá anotando?
— Tô.
— Mulher é tudo puta.
— Sério?
— Sério.
— Até minha mãe?
— Principalmente! Comi muito a D. Mirtes!
— Porra, Pedrão! Essa foi demais!
— Certo. Agora deixa eu dormir.
— Tá.
4. Ligaram do trabalho do Dudu. Diziam que ele não aparecia há quase uma semana e não atendia as ligações. Perguntei se ele não tinha mãe, e me disseram que ele tinha, mas preferiam ligar pra mim porque eu era muito próximo do Dudu. Desconfio que, no escritório, acham que somos amantes. O Dudu tava arrasado.
— Cadê a pasta, Dudu?
Ele não respondeu. Levantou a mão e contorceu os lábios, girando a cabeça em negativa, como quem dissesse eu nadando em merda e você pergunta do papel?
— Tentei ligar em sua casa e nada. Passei lá o porteiro disse que você tinha saído. Daí eu pensei: ”uma hora ele vai ter que comer”.
O Dudu confirmava com a cabeça, como se dissesse que entendia a piada. Mas não ria.
— Montei tocaia aqui. Você não vai acreditar, mas aqui eles têm um português de verdade. Tem bigode e tudo, e desconfio que é burro como uma porta. Tenho quase certeza que ele me deu troco a mais.
Ele não ria. Estaria tomando aulas com a Natália?
— Pô, Dudu! Assim não pode, cara! Reage, fala alguma coisa! Nem que seja pra me mandar pra puta que pariu mas fala, cacete!
Ele respirava fundo.
— Lembra quando foi comigo, o que você fez? Eu queria ficar na cama até morrer de fome, até eu mofar e virar um esqueletinho no colchão, e o que você fez? Me jogou um balde de água fria e deu foi um murro na cara! Na cara, Dudu!
Dudu tinha os olhos úmidos. Os lábios tremiam.
— Manda à merda, Dudu! Manda se fuder!
As lágrimas caíam. Dudu respirava rápido.
— Abre essa boca e fala alguma coisa, porra!
Ele olhou pra mim e abriu um sorriso maldoso.
— Pau no cu daquela puta. Ela que se foda! — É isso aí, Dudu.
Dudu entrou na padaria e sentou ao balcão.
— Tem dinheiro pra cachaça?
5. O Dudu tava até bem. Não usava mais a camisa preta. Não sei se por porque mudou mesmo, ou porque a camisa tinha ficado na casa dela. Estava mais corado, ria mais, fazia uma piada ou outra. Era como uma versão genérica, meio descolorida, do Dudu de antes. Veio agora: era como um Dudu passado na kiboa. Ele comia um wrap de tomate seco. Eu tomava meu chá.
— E o escritório?
— Muito bem... você sabia que lá dizem que você é minha puta?
— Desconfiava. Mas puta mesmo, de programa, ou só uma vagabunda dedicada?
— Vagabunda dedicada.
— Ah, bom. Eles que me desrespeitassem.
Dudu brigava com os talheres.
— Não me descontaram o salário. Legal da parte deles.
— É verdade. É tipo uma licença maternidade, só que pra corno.
— É. Licença Corno.
— Licença Chifres.
— Prefiro Corno.
— Que seja. Eu não sou corno, mesmo.
Pedi mais um chá.
— Eu vou acabar de comer e ficar olhando você tomar chazinho?
— Algum problema com isso?
Um pouco de silêncio. O garçom chegou com mais chá, uma jarra cheia. Minha bexiga se contorcia só de olhar.
6. É de madrugada. Ligo pro Dudu.
— Dudu?
— Diga.
— Ela morreu me odiando?
— Quem?
— A sua vó, morreu me odiando ou já tinha perdoado?
— Como é que eu vou saber?
— Sei lá, ela disse alguma coisa, assim, no leito de morte? Eu preciso saber, Dudu.
— Eu não ouvi direito... eu não lembro.
— Fala a verdade, Dudu!, fala a verdade!
— Eu acabei de acordar...
— Anda, Dudu! Eu não posso dormir com isso!
— Eu acho que foi...
— Conta...
— Como foi, meu deus?...
— Anda, anda logo...
— Ah, lembrei!
— Desembucha!
— Ela falou: ”Filho da puta aquele seu amigo, hein?!” E depois morreu.
— Pô, Dudu, você espera que eu acredite nisso?
— Mas foi o que ela falou.
— Tá, tá bom. Vou dormir como um anjo agora.
Desliguei o telefone.
7.
— Natália, eu preciso te contar uma coisa.
— É o quê, Pedrão?
— Eu amo o Dudu.
— Eu sei disso. Ele é seu amigo.
— Não, Natália. Você não entendeu. Eu AMO o Dudu.
— Eu sei, você ama ele muito. Quer que fique com ciúme agora?
— Não, Natália. É diferente.
— Diferente como?
— É que eu tô apaixonado, entende?
— Você tá brincando...
— Sério.
— Quando isso começou?
— Não sei... acho que foi quando ele perdeu a namorada. Estava tão frágil, senti uma vontade de abraçá-lo, confortá-lo, beijá-lo...
— Mas Pedrão, você nunca foi disso, o que aconteceu?
— Eu sei, mas aconteceu, o que eu posso fazer? Não é que eu seja viado...
— Não?
— Não. Eu não gosto de homem. Só gosto do Dudu.
— E ele, o que acha disso?
Dudu estava lívido. Ele não esperava por isso quando o chamei pro café.
— Você sabia disso?, perguntou Natália.
Ele não conseguia formar as palavras. Natália se levantou.
— Francamente. Depois de velho resolve virar bicha. Boa sorte, Dudu. Vou embora.
Natália se levantou e saiu.
— Dudu, me desculpe. Eu nem sei onde eu tava com a cabeça... Dudu tinha os olhos arregalados.
— Olha, eu vou indo. Eu sei que você precisa de um tempo pra assimilar. Pensa bem, tá?
8. De madrugada o telefone toca. Está mudo, mas respirando.
— Dudu, é você?
— Sou eu, sim.
A voz estava cansada.
— Olha, deixa eu falar uma coisa sobre ontem... é que na verdade...
— Não, deixa que eu falo, Pedro. Você sempre foi meu melhor amigo, cara...
— Eu sei, mas...
— Não. Você já falou muito, agora é minha vez, ok? A gente se conhece há quanto tempo? 10, 15 anos? E nunca você me deixou na mão. Não vou te mentir que me surpreendi com tudo o que você disse, mas pensei bem depois. Tudo o que você falou fez sentido. Lembro quando a gente ia no fliperama juntos, as tarde no shopping, quando não nos desgrudávamos na escola, de todas as vezes em que nos consolamos quando as mulheres sacanearam com a gente...
— É verdade, Dudu, é verdade...
Eu já me emocionava.
— Então, foi pensando em tudo isso que eu tomei essa decisão. Vamos tentar, que se fodam os outros! A gente se ama, caralho. Vamos fundo com essa história, viver uma história de amor entre homens!
— Pô, Dudu. Isso que você falou foi lindo, mas é que eu queria dizer uma coisa...
— Fala, Pedrão. Qualquer coisa.
— É que ontem... bem... você sabe que eu adoro brincar com você, né?
— Sei, sei... e como eu adoro brincar com você!
— Pois é, é que eu tinha combinado com a Natália...
— Eu sei... mas não saiu como você tinha pensado, tudo bem...
— Sabe o que é, é que..., aquilo que eu te falei... bem, não sei nem como dizer isso agora, depois de tudo isso...
— Fala o que você quiser.
— É que era tudo brincadeira.
— Como assim, brincadeira?
— Pô, Dudu, vai me dizer que você não olhou no calendário?
— Olhei não, porque?
— Você sabe que dia hoje?
— Não...
A voz sumia do outro lado do telefone.
— Hoje é 2 de abril, Dudu. Ontem foi primeiro de abril. Primeiro, sacou?
— Saquei...
Um silêncio.
— Dudu, você é um sacana mesmo!
— Oi?
— Me pegou! Putaquepariu, você me pegou!
— Como ass...
— Touché, Dudu!, touché! Fez o feitiço virar contra o feiticeiro! Eu sempre te achei um gênio! Eu acreditei mesmo que você queria... caralho!, genial! Essa você tem que contar pro pessoal sexta-feira. Histórica! Depois dessa só indo dormir mesmo. Caraca... touché!
— É... touché.
— Té mais, Dudu.
— Té.
E desligamos.
Engraçado... nunca mais eu vi o Dudu. Que saudade do Dudu.