Davi Ramos

Mais Estranho Que a Ficção

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Mais Estranho Que a Ficção (Stranger Than Fiction, Marc Foster, 2006)

Sinopse: A tediosa vida do auditor fiscal Harold Crik é desnorteada por um evento dos mais estranhos: do nada, surge clara em sua mente a voz de uma escritora narrando cara detalhe de sua vida à medida em que ela vai acontecendo, e ele descobre que é de fato um dos personagens de seu novo livro, que ainda não terminou de ser escrito. Tudo o que acontece no livro, acontece com ele, e Harold Crik precisa tomar as rédeas de sua vida.

De todas as abordagens que se pode fazer de Mais Estranho Que a Ficção, a mais preguiçosa e menos interessante seria a de enquadra-lo no universo da comédia romântica, gênero ao qual o filme, ao contrário da propaganda, não pertence. Quando evita o artificialismo de explicar o inexplicável, a história se localiza com mérito no universo do realismo fantástico, mostrando afinidade com autores como Hermmann Melville (Bartleby, o Escriturário ), Gogol (O Nariz ), e Kafka (O Processo ) ─ este universo da criação que influenciou aquele que é hoje um dos roteiristas mais influentes de Hollywood: Charlie Kaufman (Quero Ser John Malkvovich, Adaptação, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças).

A típica empresa americana onde trabalha o infeliz Harold Crick já havia sido bem representada em Clube da Luta, com suas baias infinitas, ambiente asséptico e claustrofóbico. Agora, dá-se o encontro entre Dilbert e O Processo — nunca um escritório foi tão hermeticamente entediante. A limpeza da fotografia no ambiente de trabalho é manchada por um sutil tom amarelado, quando adentramos na vida pessoal de Harold. Já no apartamento de seu par romântico (por mais que pareça, este filme não é uma comédia...), o vermelho domina, enquanto o ambiente do professor de literatura Jules Hilbert (Dustin Hoffman) ganha um respeitável magenta. O jogo de cores funciona sem se dar a notar, definindo tonalidades dramáticas com precisão.

Também os efeitos gráficos mostram um domínio único. Cúmulo do paradoxo, os grafismos que acompanham os atos do personagem, como etiquetas fixas que contam desde a quantidade de escovadas nos dentes até o número de passos que dá ao atravessar a rua, servem para um invulgar ar retrô, extremamente elegante. Quando Harold sai correndo, em um momento, os gráficos claramente virtuais se desfazem e caem no chão como pedaços de acrílico. São os anos noventa revisitados.

O roteiro inova ao ir até a essência (a simplicidade, aliás, é um poço que não parece jamais se esgotar), materializando impressões cotidianas, humanas e universais. Quando encontra sua paquera no ônibus, por exemplo, Harold salta 27 quadras antes, por achar que faltará assunto no caminho todo. Para essa impressão completa de seus sentimentos, o filme se vale da ótima narração em off de Emma Thompson, cuja inegável qualidade literária, plenamente justificada pela premissa fantástica, se harmoniza à imagem com elegância e humor. A notável atuação da atriz compõe uma escritora atormentada pela própria obra, que parece criar vontade própria, ao ponto de seu protagonista literalmente bater à sua porta. Já Will Ferrel (Crick) trabalha com singeleza a apatia de seu personagem, aprofundando a cada cena um laço sincero com o espectador, através de uma tocante construção do homem comum, digno mesmo em sua irrelevância. Ao personagem é revelada sua condição como tal, tem negada a diegese quimérica de seu simulacro. A partir desse conhecimento “proibido”, revolta-se e tenta perverter o sistema narrativo em que se encontra encerrado através do conhecimento de suas regras, o que o leva buscar apoio no professor de literatura vivido por Dustin Hoffman, impagável e cativante num papel bonachão e meio amalucado.

Não por acaso, a relação entre os dois passa a servir como uma espécie de terapia, dando ensejo a que se construam as ligações naturais entre a própria estrutura dramática das histórias e a vivência real dos seres humanos, esta também, ao que parece, dividida em três atos permeados reviravoltas e pontos de virada. A idéia de ordenamento e fatalidade leva Harold Crick à loucura. Ele precisa se libertar do determinismo narrativo a que se encontra fadado. Parece confuso, mas o filme é isso mesmo: se ingerido rapidamente, agrada e preenche, mas, se observado com atenção, encontra-se um modelo do mundo em muitas dimensões.

Um impulso poderoso guia esta obra, ao ponto de, com uma simplicidade que naturaliza o seu entendimento, agrupar questionamentos em torno da narratologia estruturada em parâmetros lógicos, e sua problemática relação com a dinâmica criativa (no exemplo vivo da escritora encarnada por Emma Thompson). Ao mesmo tempo, brinca de A Última Gargalhada (Murnau) e, com o frescor de um Frank Capra, a história mostra a sua verdadeira face fantástica. Pensando bem, não é tão fora do comum que um homem tenha sua vida narrada por uma escritora que o criou enquanto batia à máquina entre um cigarro e outro. Estranha mesmo é a beleza prosaica de um filme que, no ano de 2007, sai do lugar-comum ao nos lembrar de uma verdade que, para contrariar um ditado famoso, de tão repetida parecia ser mentira: ser honesto faz bem, o amor é lindo, e os grandes atos redimem o homem.

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