Davi Ramos

A Melhor Noite de Todos os Tempos

sirens


— Que noite! Que noite, querida!

— Um grande noite, mesmo!

— De onde vieram esses flamingos?

— Eu não tenho idéia!

— Onde está minha cueca?

— Ali, perto da lareira!

— Eu não acredito, está perfeita! Intocada, é um milagre divino!

— Xô! Xô!

— Querida, sai da frente por um segundo...

— O que você vai fazer, George?

— Eu não sei porquê, mas tem uma pistola em cima da mesa... eu, eu...

— George, não se atreva a atirar nesses lindos animais!

— Só saia da frente, Linda!

Dois tiros.

— Eu não acredito, eu acertei!

— Eu não acredito que você acertou! Tenho que admitir, estou um pouco aliviada...

— Flamingos não foram feitos para apartamentos.

— Você tem razão. Oh, você sempre tem razão.

— Mas afinal, o que aconteceu na noite passada? Eu não tenho a mais vaga lembrança!

— Nós dois fomos dormir assistindo TV, como fazemos todas as noites...

— Sim, disso eu me lembro. Mas então algo aconteceu. Algo maravilhoso!

— George, você lembra de....

— Paris?

— Sim, Paris!

— Nós estávamos em Paris por um instante! E depois Londres, Dubai, Rio de Janeiro!...

Linda tira o sapato e joga uma quantidade de areia descomunal, para os olhos atônitos de George.

— Querida, como podemos explicar isso?

— Não podemos.

— Vamos refazer nossos passos.

— Sim, vamos.

— Eram 7 horas. Eu sei disso porquê é quando eu chego do trabalho. Eu entrei, você estava assistindo TV como sempre. Eu beijei sua testa e fui para cozinha fazer um sanduíche de mortadela. Coloquei a pasta na mesa, preparei o sanduíche. Enchi um copo de coca cola sem gás, sentei bem aqui, no lugar de sempre, à sua esquerda no sofá. Pus o copo aqui, onde já está marcado na mesinha, e comi meu sanduíche. Veja, ainda tem migalhas onde eu estava sentado.

— Sim, sim.

— Tudo igual.

— Sim, George...

— E então eu dormi vendo TV, e você me levou pra cama, e então...

— E então isso!

— Sim, isso! Os flamingos, a nudez, a areia, o Carnaval do Rio! Você lembra do Carnaval?

— Como lembro, eu era destaque em uma Escola de Samba!

— Estava linda, Linda! Como nunca esteve!

— Veja, ainda tem um pouco de purpurina em sua nunca...

— Oh, George...

— Oh, Linda...

Fizeram amor ali mesmo, no chão frio do apartamento no Brooklyn.

— Linda...

— Sim, George...

— Ainda acho que alguma coisa aconteceu, algo tem que ter havido de diferente pra fazer tudo isso...

Linda engole seco.

— George, eu preciso te confessar uma coisa.

— Yes, darling...

— Depois que você dormiu, e antes de te levar pra cama...

George coça o peito desleixadamente.

— Bem, eu fiz uma coisa que eu não fazia há anos...

— Mesmo? E o que foi?

— Eu coloquei a boca bem no seu ouvido, mesmo sabendo que você não iria ouvir...

George parou o movimento e olhou para Linda.

— E disse que te amava.

Um momento se fez naquele momento, algo que sem dúvida estragaria qualquer momento. Especialmente naquele momento.

— Você disse o quê?

— Eu disse que te amava, querido.

— Mas Linda... nós somos casados.

— Eu sei disso, George.

— Há quase dez anos, Linda.

— Sim, e daí, querido?

— E daí que tem certas coisas...

— Que coisas?

— Certas coisas que podem acabar com um casamento!

— Como amar o seu marido!

— Especialmente!

— Eu não entendo como amar o meu marido pode acabar com meu casamento!

— Querida, olha bem pra mim. Eu sou amável, por acaso?

— Eu acho...

— Mas por quanto tempo mais? Cinco, dez anos?

— Não! Para sempre!

— Isso é o que você pensa! Ninguém é amável para sempre! Bote uma década e eu vou ser uma rolha de poço barriguda e sem graça, um chiclete sem gosto que você vai querer trocar pelo primeiro italiano que te entregar uma pizza de calabresa – okay, má escolha, mas você entendeu!

— Mas eu não quero te trocar, eu te amo!

— Vê o que eu digo? De novo a loucura!

— Eu não sou louca, você é louco!

— V-Você não entende! A gente tem o casamento perfeito! A gente não pensa, não precisa! Eu chego em casa, eu como meu sanduíche, vejo TV até dormir. Agora, veja o que você começou. Toda vez que você falar isso a gente vai ser obrigado a ser...

— Feliz?

— Isso! Você tem idéia de como isso tudo é cansativo? As festas, os amigos, as risadas, as viagens! As fotos, oh meu deus, as fotos! Você tem idéia do que você fez com a gente?

— Mas querido, eu não sabia...

— Você não sabia, é claro que você não sabia...

— Tem algo que eu possa fazer?

— Eu não sei, eu realmente não sei...

— Eu prometo que não falo mais!

— Mas já falou! Não tem volta! Agora é só decadência...

— Não sei o que dizer!

— Talvez a gente precise de uma crise, uma boa e velha crise no casamento. Uma amante! É isso! Você me expulsa de casa, me detesta por um mês ou dois, depois eu volto aos poucos, me confesso um homem novo, entramos pra terapia de casal, reconstruímos tudo do zero... e talvez, talvez, tudo possa voltar a ser como antes.

— Oh, querido, é tudo que eu quero!

— Muito bem. Me dê meu casaco!

— O que você vai fazer?

— Vou sair agora. A barista no café da esquina está flertando comigo há um mês e eu não fiz nada porquê nosso casamento estava ótimo!

— Vá, querido! Pelo bem de nosso casamento! E não volte nunca mais! Eu te odeio, seu canalha imprestável!

— E eu te desprezo, sua vaca insuportável!

Se beijam raivosos. George sai batendo a porta, ainda atordoado. Em seu bolso, o canhoto de visitação da Torre Eiffel.

Publicação original.

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