Davi Ramos

O Conde

raio


— Victor, onde você conseguiu essa ferida?

— Não sei, Martinha. Eu saio e, quando volto, estou assim.

— Tá sangrando...

— Eu não me importo.

— Eu nunca sei o que você faz. Fico aqui nessa casa vazia...

— Eu não mandei você ficar.

— Mas eu fiquei, não fiquei?

— Não lembro de ter convidado.

— Mas eu vim, não vim?

— Sim, e isso foi algo bom.

— Quer que eu cuide dessa ferida?

— Melho não... eu gosto assim.

— Nunca vou entender esse seu gosto.

— “Gosto de sangue”.

— Gosta?

— Não. É um filme. “Gôsto de Sangue”. Dos irmãos Coen. Você não conhece...

— Deve ser por isso que a gente não conserva mais. Eu não conheço nada...

— A gente conversa.

— Sim. Sobre o tempo, as piadas sem graça do Jornal Hoje e seu hábito de comer feijão gelado...

— O que você quer que eu fale?

— Admita que isso aqui não existe mais. Que eu virei mais uma de suas crônicas...

— Você não quer isso. Não de verdade.

— Sim, eu quero. Como é mesmo? Ah sim, você começa imitando Veríssimo, desenvolve como Fonseca e termina como Woody Allen.

— Não tem como você saber disso...

— Claro que eu sei. Tem meses que eu não sou mais sua mulher. Apenas mais um de seus malditos personagens!

— Se você fosse um de meus personagens, porquê eu ainda estaria aqui!?

— Isso eu não sei.

— Porquê eu simplesmente não escreveria tudo que eu quero logo de uma vez, depois te jogava de um elevador ou de um carro ladeira abaixo, como num episódio da novela das oito?

— Você é muito orgulhoso pra isso...

— O que você quer de mim?

— A verdade, ora. É o que eu mereço, agora que já me sei morta.

— Você não está morta, eu converso com você.

— Não essa sua especialidade? Agora fale. Porquê você não volta pra casa?

— Pra não ver essa cara triste toda vez que eu chego do trabalho, pra não ter que consolar nem sei o quê mais, pra não ter que te convencer de que eu te amo, porquê de tanto te convencer eu nem sei mais se é verdade. Então eu saio.

— É isso que você acha de sua mulher? Que eu sou um poodle carente, abanando o rabinho pra você toda vez que chega?

— Não, não é isso que eu penso de você. Um poodle, de vez em quando, pode morder. Você perdeu seus dentes há muito tempo.

— O que é isso, o que você está fazendo?

— Eu não estou fazendo nada...

— Então o que é isso em minha mão?

— Seus dentes, ora.

— Você arrancou meus dentes!

— Eu não fiz nada.

— Está sangrando e eu não quero que sangre!

— Não tem nada que eu possa fazer. Eu não devia ter voltado...

— Você não me ama?...

— Estou cansado...

— Ama ou não ama?

— Você acha que pode arrancar isso de alguém assim, como uma confissão?

— Você sabe que eu posso! Veja, meus dentes!

— O que tem eles?

— São grande demais...

— São dentes de cavalo!

— Não. Dentes de vampiro!

— Espera aí. Me dá esses dentes!

— O que você vai fazer?

— Parece que eles se encaixam bem aqui, onde faltava. Dois buracos na gengiva...

— Você não vai dizer que...

— Querida, obrigado.

— O que você está fazendo?

— Você tinha razão. Você conseguiu. Eu te amo, eu sempre te amei. Mas agora eu preciso ir embora.

— Porquê?

— Você não entende? Os dentes, os dentes que você me deu. Era justamente o que faltava!

— Pra quê? Eu estou assustada.

— A ferida, o sangue, você não entende? Era tudo um truque.

— Entendo o quê?

— Você é a melhor mulher do mundo, eu devo tudo a você, mas eu preciso partir, querida.

— Como você pode partir, se me ama?

— É mais complicado que isso. Eu tenho uma missão, é maior do que eu. Maior do que eu e você juntos!

— Do que você está falando!

— Não chore, meu amor! Mas eu preciso partir! A noite, a noite me chama!

Victor encaixa os dentes na boca.

— O que é isso, Vitinho? O que você tá fazendo?

— Amor, você ainda não percebeu? Graças a você, eu descobri meu verdadeiro eu. Eu sou o Conde Drácula!

De-repente um clarão. De-repente, um trovão. E um morcego gigante voa janela afora.

Publicação original.

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