O Escritor
O escritor acorda em sua cama de escritor e se levanta, literariamente falando, até ficar de pé. O escritor decide que deve, precisa com urgência colocar para fora o monstro que vibra grugulejantemente nas entranhas profundas de seu eu lírico. Escritor, aliás, está sempre lírico, leve como uma pena que cai do pombo que defeca na torre do gárgula da catedral. Resumindo, ser escritor é um lance meio fresco (antes que as péssimas línguas se manifestem, blogueiro não é escritor).
O escritor, escritoramente falando, coloca seu óculos (que deverão ser de armação preta e pesada) e se senta ao computador. Entrará no orkut (quem disse que escritor não tem vida social?) e mandará scrap (que ele não chama de scrap, mas de recado, em respeito à amada língua portuguesa) para alguns de seus 300 amigos. O escritor checará o email, comentará o blog de seus amigos escritores/poetas/cineastas/artistas plásticos e depois, disciplinadamente (como todo escritor) deixará o Messenger no ocupado e abrirá o seu Templo Sagrado de Criação (cuja sigla é Word, como se sabe).
Um tema, pensará. Olhará o cursor piscando, impaciente. Respirará fundo. Se aprumará na cadeira, deixando a coluna ereta, em posição de escritor. Colocará as mãos sobre o teclado. Tocará uma letra. Não, não está bom. Ele está cansado, enfastiado desse trabalho árduo de expressão mental. Deve, sem sombra de dúvida deve, se levantar, comer algo, acender um cigarro, deitar na cama, assistir TV, defecar lendo jornal, ligar para alguém que não está em casa, sentar ao computador, olhar o orkut, o email, os blogs e o msn, e, então, aí sim, começar a escrever.
"O sentido da vida", ele escreve.
Os pássaros cantam nas árvores do jardim. Os carros passam, e pela manhã eles têm um ronco tranqülo e confortante.
"O sentido da vida, meus amigos, é".
O escritor sente ribombar em seu peito meramente humano a atencipação do divino, do universal, do sacro, do transcendente. Não se pode escrever assim. É preciso ponderar, colocar a emoção no cabresto da mente, do intelecto superior. Deve, sem sombra de dúvida deve, se levantar, fumar um cigarro, defecar lendo o resto do caderno cultural, checar se a pessoa já está em casa, brincar com seu cachorro, olhar os pássaros nas árvores, tirar um cochilo, acordar e decidir cochilar mais um pouco, acordar e decidir que ainda falta um pouco pra mais um pouco, acordar, acender outro cigarro (pois o outro já queimou sozinho no cinzeiro), levantar, ir até a frente do computador, olhar para ele com uma expressão enigmaticamente literária por dois minutos, se sentar, tragar o cigarro, posicionar as mãos sobre o teclado e tocar uma letra.
O escritor não conseguirá pressionar a tecla. Seu espírito sensível sabe que, o que quer que ele escreva, será indigno daquela inspiração supra-humana . É então que ele lembra, espantado, do que havia esquecido (e, geralmente, é isso que acontece). Coloca o cigarro no cinzeiro, se levanta, vai até a cozinha e volta com um pires na mão.
"O sentido da vida, meus amigos, é...", repetiu mentalmente.
Escreveu, afinal.
"O sentido da vida, meus amigos, é o sonho".
E terminou de comer o sonho que havia trazido da cozinha.