Davi Ramos

Paixão à Flor da Pele

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O que esperar de um filme com esse título, cuja capa do DVD mostra o jovem galã Josh Hartnet erguendo a bela Diane Kruger num acesso de paixão? Um thriller erótico? Uma comédia romântica açucarada com alguns momentos picantes?, ou um filme quase incatalogável, cheio de surpresas, reviravoltas, um olhar doce e inteligente sobre o trivial, um roteiro mais que bem amarrado, atuações fora da média e um final surpreendente? Ok, acho que me excedi. Respiremos um pouco.

Paul McGuigan é um diretor relativamente jovem. Nascido na Escócia, ele tem 42 anos. Seu filme anterior (The Reckoning. 2003), uma co-produção Espanha - Estados Unidos, uma espécie de thriller medieval, não chamou muita atenção, embora tenha sido elogiado à época. Antes dele, Joel Schumaccer (diretor mão-pesada de Hollywood, de bombas como O Homem Sem Sombra e 8MM) estava cotado para dirigir Paixão.... Rendamos graças aos deuses do cinema, que impediram esse desastre.

McGuigan mostra maturidade ao filmar essa história que poderia muito facilmente cair no lugar comum dos filmes do gênero, lembrando em certos momentos um outro diretor do Reino Unido que trabalhou nos EUA: Alfred Hitchcock. É claro que o roteiro enxuto e poderoso de Brandon Boyce (remake do francês L'apartment) dificilmente resultaria em um filme pífio, mas enfiar o pé na jaca do melodrama americano seria um erro fácil e até previsível. Talvez por não ser americano, McGuigan confere à história um tom médio, às vezes naturalista, filmando com trivialidade e elegância. Não por acaso, Paixão... caminha entre a sutileza européia e a eficiência narrativa americana.


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No elenco, Josh Hartnet interpreta Matthew, o yuppie apaixonado da capa, e imprime com competência toda a introspecção e sensibilidade represadas do personagem. Matthew Lillard, que vinha se especializando em personagens hilariantes e grotescos, como o Salsicha de Scooby Doo, o adolescente panaca de Ela é Demais e o típico (e engraçadíssimo) colega-de-quarto-malucão-do-cara-certinho em Sem Sentido, faz o melhor amigo de Matthew. Menos histriônico que de costume, Lillard encarna um mentiroso compulsivo que cativa desde a primeira cena.


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Diane Kruger encara uma tarefa difícil. As cenas de sua personagem vêm sempre acompanhadas de um tom de lirismo e nostálgia, e a atriz parece consciente disso, criando uma Lisa fascinante, entre a criança e a mulher fatal.

Rose Byrne, também excelente, faz uma Alex que se revela em camadas (como o próprio filme), fazendo vários personagens através de um só, revelando as múltiplas faces de um ser humano complexo, apaixonante em certos momentos, digno de pena em alguns e desprezível em outros.

Depois de uma hora de filme, fica difícil colocar Paixão à Flor da Pele na mesma prateleira das comédias românticas que lotam toda videolocadora que se preze. Podemos falar de uma conspiração romântica, de um Hitchcock caindo pro sentimental, enfim. Melhor esquecer os rótulos. A história descrita em suas linhas gerais não traz grandes novidades. Matthew vai se casar, mas, em um restaurante, parece ter ouvido a voz da mulher de sua vida dentro de uma cabine telefônica. O filme conta a história dessa busca pela mulher amada.

Lembra (apenas lembra) Segundas Intenções, mas em um nível mais profundo. Menos a crueldade sexualizada adolescente para o delírio das platéias imberbes, mais o olhar maduro sobre o ser humano. Articulando-se em vários planos narrativos, a história alterna os tempos com liberdade, usando o flashback de forma interessante, potencializando a história, revelando-a aos poucos. Não temos só uma caminhada progressiva para o clímax, mas também um aprofundamento nos personagens e nos seus dramas, cujos recursos narrativos conduzem (num processo catártico) o espectador com habilidade, criando uma identificação que é a chave do efeito produzido.

Com tantos trunfos, alguns equívocos são esquecidos rapidamente. A introdução tem uma abertura atulhada de efeitos tolos e desnecessários, que prejudicam a narrativa e é mesmo desinteressante, tecnicamente falando. Não só isso, como vai totalmente contra o tom do filme, dando a impressão de uma decisão de produtor (do tipo: "você pode fazer seu filme europeuzinho, mas coloca uma abertura moderna pra não assustar o público"). Em certos momentos, a transição entre os tempos se torna confusa, o que não deixa de ser também um atrativo que força o espectador a manter redobrada atenção na história. Nada que comprometa. Some-se a tudo isso a fotografia de Peter Sova (Donnie Brasko), que aproveita com sensibilidade toda a beleza de uma Chicago coberta de neve, e a montagem eficiente (embora exagerada nos efeitos, em alguns momentos) de Andrew Hulme e os poucos desvios parecem cada vez menores.


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Fica difícil entender o porquê de Paixão à Flor da Pele não ter sido mais comentado à época de seu lançamento. Talvez os catalogadores de plantão o tenham colocado rapidamente no mesmo saco das comédias românticas produzidas às centenas pelo mercado americano. Uma pena. Paul McGuigan produziu uma obra enxuta e redonda, que não derrapa no final, como está ficando comum em filmes americanos. Hoje, é raro ver obras como essa, em que boas histórias encontram uma execução à altura. E McGuigan, se souber construir uma caminhada sólida no mercado estadunidense, poderá ser um dos que vão produzir a necessária renovação de Hollywood. É esperar pra ver.

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